17.3.11

Trilogia da Vergonha


O Relógio.

Continuava no canto da sala vivido e barulhento o relógio de pendulo dos meus avós, contando com seus ponteiros cada segundo de sofrimento que tenho nessa casa, cada minuto de aflição, cada hora de desesperança. A vida que me foge entre os dedos vive nos ponteiros do relógio, a coragem que me falta move o seu dourado e barulhento pendulo, enquanto me preparo neste outro canto com as pílulas na mão e uma idéia na cabeça.
A solidão do relógio não é maior que a minha, as dores da minha tristeza se somatisam em agulhadas no meu peito, e um tremor em meus dedos. Funcionasse eu como o relógio estaria balançando feliz, sem importar-me com a musica ou com o reconhecimento alheio, viveria por viver, estaria feliz por estar vivo. Mas de que adianta estar vivo quando já foge tudo de dentro de si? Quando o que resta são apenas pílulas na mão direita, a falta de quem se ama e a dor de ser invisível.
Quanto mais olho para o relógio mais hipnotizo-me com o seu balançar, mas me apego a idéia de que mesmo despretensioso de si ele cumpre seu trabalho, e o faz a 137 anos. Se eu engolir as pílulas em minha mão não chegarei aos 30. Mas eu por outro lado fui apenas pretensão, não realizei nada, não fiz nada eu por outro lado não sou absolutamente nada. Todos festejam o relógio, dizem com ar interessado “que belo relógio é suíço ou alemão?” “ele sempre trabalhou? Já teve alguma peça trocada?” “que belo artefato, fico admirado só de pensar que ele passou por duas guerras” . Encontrei-me com um amigo outro dia ele me saudou, disse que iria até ali e logo voltaria. Espero que alguém fale comigo dês de então.
Olho as pílulas. O sol do poente que entra pela janela velha de madeira da mesma cor do assoalho bate em meu rosto, olho o relógio na parede que não recebe luz, o dourado do pendulo se envelhece a ausência da luz. Estico-me e alcanço o copo de leite e o saco plástico que havia deixado no chão ao meu lado, o leite serve para que eu não vomite, o saco plástico colocado sobre minha cabeça me tomara o ar aos poucos e me dará uma morte menos conturbada, pois quando meu coração desistir já estarei desmaiado.

O velho relógio minha única testemunha. Meu ato mais covarde, meu gesto mais nobre. Boa noite.

As Pessoas


Acordo, lâmpadas brancas e compridas passam rapidamente a frente de meus olhos, tudo é branco. Aposto minhas pernas como o céu não é iluminado por lâmpadas florescentes. Estou em um hospital. Puta que pariu(...).

Acordo novamente vários rostos me fitam enquanto uma mulher mais jovem que eu me fura o braço, ela passa a mão em meu rosto e diz “tudo ficará bem” mal sabe ela o quanto eu quero que ela esteja errada, mal sabe ela o quanto quero morrer. Noto que dentre os rostos que vejo há um velho senhor e vários jovens, notável, estou em um hospital universitário. O homem velho notando o meu despertar diz que minha esposa quer me ver e que ela aguarda na ante sala, respondo-lhe que não desejo ver ninguém mas ele não entende, repito por umas dez vezes, tento gritar mas ele continua não entendendo o que eu digo. O senhor se vira para os mais jovens e ordena “100 de diazepan”.

Afasia, não importa o que eu queira dizer, da minha boca não sai nada inteligível. Minha esposa entra no quarto, corre, me abraça debruçando-se sobre a maca, então de súbito ergue-se e me da um tapa no rosto. Enquanto ela chora tento desculpar-me, sei que fui covarde, mas (...).
As palavras me fogem.

Me fogem as palavras quando eu queria que me fugisse a vida.

Ela então começa a falar as coisas de sempre, as mesmas que somaram tanto na minha decisão de abandonar esse mundo. Ela só preocupa-se em como ela vai explicar aos meus pais, aos seus pais, a meu filho, aos visinhos do condomínio, aos irmãos da igreja a todas as pessoas que me fizeram achar uma mão cheia de pílulas mais atraente do que mais 40 ou 50 anos de vida. Mas lembro-me de que me abraçou quando entrou no quarto, lembro-me também que nesses 5 anos a seu lado ela só me abraçou da mesma forma quando cantei em seu ouvido uma canção do Tim Maia,

Eu amo você, menina
Eu amo você, juro.

Ainda a amo, e sei que se esquecerá rapidamente de mim, todos se esqueceram, essa não é uma tarefa tão difícil, sou morno, médio. Não faço diferença.

Meu filho entra na sala, pela primeira vez envergonho-me do que tentei fazer, ele apenas chora e repete-se dizendo “papai, fala alguma coisa papai” seus olhos de um azul profundo me comovem, digo que o amo, mas é em vão. Não consigo conjurar meus sentimentos em palavras, sigo incompreendido até para os mais próximos, sigo cercado de pessoas armadas até os dentes, sigo aos cuidados de gentis médicos e enfermeiras, mas sigo só.

O Ego


Fecho os olhos, tento desligar-me forçosamente do mundo, não morro, tampouco adormeço e imergido em pensamentos lembro-me que faltavam apenas dois dias pro meu pagamento, eu havia prometido a mim mesmo um novo laptop, o meu já era um problema maior que as soluções que eu vendia, não daria pra comprar um laptop a vista, mas pagaria a metade e parcelaria o resto, os clientes notam a maçãzinha quando você abre o note book, quando não se é o melhor deve-se impressionar pelo equipamento, pela educação, pelos preços. Mas a verdade é que já não suportava o personagem, nunca dei pra essa coisa de analista de negócios, queria ter uma loja de camisas, apenas camisas.
Estou com minha bunda completamente de fora nessa roupa de hospital (lembro-me da loja de camisas), entra na sala um outro medico diz que tive algo no cérebro, me operaram com um cateter, não entendo picas de medicina. Ele pede pra que eu diga meu nome, então ele pede pra que eu diga meu aniversario, ele finalmente me faz a pergunta que eu tanto temia, ele me pergunta o que aconteceu. Eu respondo mesmo sabendo que não era nenhuma novidade. Ele me da um calmante e vou para meu sono.
Eu tocava guitarra na adolescência, eu comi a Karen no primeiro ano, a mais linda garota do colégio, era o rei daquela turma. Fui expulso da escola, viajei até São Paulo onde terminei os estudos e montei uma banda, que tocou até na tv, voltei passei na federal de primeira, fui presidente do DCE dês de o terceiro período. O que aconteceu comigo? Eu já estava morto a anos na verdade, eu e o relógio só estávamos terminando o serviço. Casei-me, tive um filho que graças a Deus é a cara da mãe, administro o negocio dos outros. Meu sogro diz que o que eu faço pra viver é o equivalente a bater punheta com o pau errado, ele nunca me aprovou.

O medico retorna diz que eu terei alta no fim da tarde e que recobrarei plenamente meus sentidos e meu poder de raciocínio em alguns dias, e vira-se para a porta e de lá surgem minha esposa meu filho e meus pais, estes trazem uma sacola enorme com roupas e comida, não me lembro da ultima vez que comi. Ergo-me e pego um dos deliciosos bolinhos de chuva da minha mãe com uma das mãos, enquanto a outra é segurada pelo meu pai que finge ter um cisco no olho, minha esposa separa minha roupa e meu filho a essa altura já deve estar fazendo corrida de cadeiras de roda.

É chegada a hora de partir do hospital, o medico me faz algumas recomendações e diz “cuide-se” enquanto me dirijo com a minha família até a porta, eles sorriem, falam sobre igreja e Deus, eles falam que as coisas serão melhores, eles falam que não irão contar o ocorrido a ninguém. Como eles falam.

Saio do hospital entro no carro do meu pai, lembro-me do velho relógio de pendulo, ponho as mãos no rosto e choro. Choro a vergonha de um homem covarde enquanto noto a cruel conclusão de minha epifania, fui tão incompetente para morrer quanto sou para viver.







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